1917 || Estreia em 23 de janeiro de 2020
Crítica: Maurício Ferreira
1917 é um filme que tenta passar os horrores de uma das guerras mais violentas já vividas, a Primeira Guerra Mundial, como o título indica. Com uma procura tão elementar, a narrativa acaba sendo bastante simples: o cabo Blake é chamado para um encontro com superiores e convida o amigo Schofield para acompanhá-lo; lá, recebem a missão de enviar uma ordem direta para uma unidade britânica que estava depois de uma linha de batalha alemã aparentemente abandonada. Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) precisam entregar o mais rápido possível, afinal, o irmão de Blake é tenente no batalhão que perderá homens caso a missão não seja cumprida.
Mendes busca as sensações físicas e visualmente claras do que passa um soldado em uma guerra. Sua estratégia é mostrar a dificuldade de se viver em uma zona de guerra. Por isso acompanhamos os dois soldados atravessarem as trincheiras estreitas que amontoam sujos, feridos, algum trânsito de corpos. Além disso, o cansaço físico e mental acumulado nas grandes distâncias percorridas ao longo do filme.
O diretor constrói todo o filme para que as sensações digam o que se deve sentir e entender. O uso do plano-sequência por todo o filme é a uma escolha que mostra óbvia numa narrativa que literalmente desenha uma linha num mapa. Como numa missão militar, a informação deve seguir do ponto A para o B sem interrupções. O filme entra em curto nesse momento. Em entrevista ao site IGN¹, Mendes conta que escolheu o plano-sequência para que o espectador visse com seus próprios olhos e tomasse suas próprias conclusões acerca do é mostrado. Essa abordagem condiz com a narrativa linear, militar, citada acima. É como se o filme acreditasse que reproduzir uma zona de guerra e seus perigos fosse o suficiente para mostrar a realidade de um conflito. Mostra-se cruamente, mesmo que artificialmente, uma realidade de horror a fim de um discurso pela paz.
Acontece que a realidade de uma guerra está muito mais fora do campo de batalha do que dentro dele, com todo o contexto político e econômico que produziu a guerra e seus participantes, seus corpos obrigados ao front. 1917 inclusive tenta abordar o tema com o personagem de Benedict Cumberbatch e seu discurso sobre as frivolidades das ordens contraditórias que são transmitidas de cima para baixo. Mas fica por isso mesmo e o que sobra é a vivência de jovens que sabem que nada possuem além de um corpo apto para a guerra. O que sobra é o heroísmo. A figura do herói assume um escopo vazio, a luta pela vida que sobra depois da política. É preciso, então, agarrar-se a essa figura para justificar os acontecimentos da guerra – e também os filmes de guerra.
É uma contradição que surge como problematização do estado belicoso da época – e que ensaia um retorno. Mas não uma contradição que inviabiliza o conflito no campo racional, o conflito enquanto conceito. É uma contradição que se firma na fragilidade da imagem de Sam Mendes. Uma imagem que surge de uma pretensão, mas que não a justifica.
O filme, então, basta-se na criação de empatia com os personagens. É uma abordagem muito comum em filmes de guerra. Fazer sentir a dor do outro para que nos coloquemos ali, evitando que tais problemas se repitam. Peter Jackson, no documentário They Shall Not Grow Old, usa imagens de arquivos do mesmo exército britânico na Primeira Guerra e as restaura com a tecnologia atual. Remasteriza a imagem e o som, põe o cor nas películas envelhecidas. O entendimento do diretor é que vê-los assim traria a dimensão do acontecido, talvez perdida pela má qualidade dos arquivos originais. Desse modo, o filme de Jackson vai um pouco além de 1917 e usa imagens de arquivo, registros, para conferir a veracidade da narrativa construída.
Mas o erro que ambos cometem é esquecer que é uma narrativa construída. É acreditar que um contato “direto” – seja com as informações em Jackson, ou as sensações, em Mendes – trará a veracidade do episódio. A construção de uma narrativa consciente de si mesma é o caminho que trará o discurso que o filme apresentará. E quem conta histórias no cinema são as imagens, umas depois das outras (como o próprio cinematógrafo, ao unir 24 imagens para esculpir o tempo). Nesse sentido, A Infância de Ivan, filme de guerra de Andrei Tarkovsky, atinge muito mais diretamente esse tempo a partir de suas imagens. Apesar de ser um filme muito mais calmo e silencioso, o próprio conceito da guerra deixa de fazer sentido e o discurso torna-se muito mais coeso.
1917 é um filme cheio de contradições formais e temáticas que se apóia na plasticidade e no apuro técnico para dizer o que pretende. Na arte contemporânea, porém, uma obra é muito mais o que ela diz ou faz do que o que ela pretende. Mendes busca a aparência de difícil execução quando nem isso é real. Aliás, se o valor do cinema está na visibilidade perfeita que depende de um orçamento de 90 milhões de dólares, quem não tem 90 milhões de dólares não faz um bom cinema?
Nota: 1. https://www.ign.com/articles/2019/10/09/1917-why-and-how-sam- mendes-and-roger-deakins-made-a-one-shot-movie
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